“Todos os dias eu faço uso de uma quimioterapia oral, um remédio que, se eu ficar sem, tenho medo de não sobreviver.”

A angustia é de Lucilene Silva de Lima, dona de casa de 40 anos que há quase dez anos vive com leucemia, um câncer na medula.

Ela perdeu o sossego desde que o governo federal decidiu cortar R$ 3,3 bilhões de 12 programas de saúde para o ano que vem, afetando de doentes oncológicos, como ela, a portadores do vírus HIV.

Os dados, divulgados pelo jornal O Estado de S. Paulo, são do IEPS (Instituto de Estudos para Políticas de Saúde), que comparou os valores que o governo reservou para saúde em 2022 e 2023 e descobriu um corte de verbas no Ministério da Saúde com potencial para afetar de pesquisas a tratamentos de câncer, hepatites, HIV e de populações sem acesso à saúde, como indígenas e ribeirinhos.

O Ministério da Saúde, em breve nota, afirma que “nenhuma política pública será interrompida”. “A pasta está atenta às necessidades orçamentárias e buscará, em diálogo com o Congresso Nacional, as adequações necessárias na proposta orçamentária para 2023.”

Hematomas pelo corpo

As festas de fim de ano se aproximavam em 2013 quando Lucilene notou que estava emagrecendo e sentindo-se mal com frequência demais. Quando hematomas apareceram pelo corpo, ela foi ao médico. Estava anêmica e com o baço e o fígado inchados: foi diagnosticada com leucemia mieloide crônica, um tipo de câncer que exige o uso diário de uma quimioterapia oral.

“A primeira coisa que passa pela cabeça são os filhos, porque minha mais nova estava com 1 ano e 4 meses”, recorda Lucilene. “Quem iria cuidar dos meus filhos?”

Após um período de internação, ela começou o tratamento no Hospital São Paulo, na capital. Ela se adaptou ao terceiro remédio que experimentou, o Dasatinib de 100 mg e de 20 mg, que ela recebe grátis do hospital federal.

“As duas caixinhas custam cerca de R$ 18 mil”, conta Lucilene, que agora tem uma vida normal. Em julho do ano passado, no entanto, o remédio faltou.

“Disseram que a verba não tinha sido repassada pelo Ministério da Saúde. Fiquei sem o de 20 mg até dezembro: cinco meses sem fazer o tratamento adequado”, diz ela, que precisou recorrer à doação de comprimidos por outros pacientes com o mesmo diagnóstico que ela.

Se não tivesse conseguido a ajuda, Lucilene diz que “poderia ter entrado em fase aguda, quando a doença não está mais controlada e só tem uma saída: ir a transplante”. O problema é encontrar doador compatível: uma pessoa a cada 100 mil.

“Se o governo cortar meu remédio, como é que eu vou comprar?”, questiona. “São milhares de pacientes que vão ficar sem o tratamento e sem o transplante.”

“É uma covardia tirarem esse dinheiro. O mundo está perdido. Dói no coração porque muita gente vai ter a vida ceifada.”

O impacto deve mesmo ser grande. Cerca de 626 mil pessoas foram diagnosticadas com câncer em 2020 no Brasil e 226 mil morreram, segundo os dados mais recentes do Inca (Instituto Nacional de Câncer).

Atendimento já é difícil sem cortes

Outro que teme pelos cortes na saúde é o aposentado Carlos Régio Teodoro, 69.

Diagnosticado há quatro anos com um câncer na garganta, ele precisou retirar a laringe em novembro do ano passado. O tratamento, na cidade de Uberlândia (MG), porém, nunca foi completo, de acordo com a filha dele, a professora Thaís Teodoro Lukosevicius, 34.

Direitos autorais: Reprodução/Arquivo pessoal.

“Ele já deveria ter saído do hospital com o apoio de um fonoaudiólogo, com a laringe eletrônica e o filtro de ar porque ele não respira pelo nariz, mas pelo pescoço após a traqueostomia”, diz Thaís, que calcula em R$ 2.000 o preço da laringe eletrônica e em R$ 8.000 por mês o filtro indicado pela médica.

“Como o filtro é descartável, precisa trocar todo dia. A gente compra o mais barato, de R$ 150 por mês, mas trocamos só uma vez por dia e não três vezes, como o indicado”, lamenta Thaís. “O filtro mais caro regula a troca de calor além de ser mais eficiente para barrar a entrada de poeira e sujeira no organismo.”

Ela diz que o pai precisou esperar quase um ano para conseguir marcar consulta no fonoaudiólogo e que nem todos os remédios estão disponíveis no posto, como o que ele precisa para controlar a tireoide, em falta há três meses no posto de saúde.

“A gente tem medo de que os cortes do governo piore a situação. E se ele não conseguir mais fazer exame, ter acompanhamento ou receber remédio?”

Há 33 com HIV

A mesma ansiedade se abateu sobre a professora aposentada Jenice Pizão, uma mulher de 63 anos convivendo com o HIV há 33.

“Descobri nos anos noventa, quando o carimbo de viver com aids era ainda mais cruel”, diz. “Pensava que ia morrer em dois meses e minha filha ia ficar com a pecha de ter uma mãe que morreu de aids.”

Em 1998, ela começou o tratamento com os chamados antirretrovirais, remédios novos na época e que provocavam ainda mais efeitos colaterais do que hoje em dia. Desde então, nunca ficou sem receber medicamento do SUS (Sistema Único de Saúde) — uma preocupação nova.

“Nós com HIV não podemos ficar sem remédio”, diz ela. “Se parar de tomar, aumenta a carga viral no sangue e a próxima vez que volta a tomar, esse vírus pode ter desenvolvido resistência ao retroviral e tem de mudar de remédio. Chamam isso de falência terapêutica.”

Quando isso ocorre, o médico precisa comprovar a falência terapêutica para convencer o SUS a fornecer um novo medicamento. Para isso, o paciente passa por um exame “caro e demorado” para descobrir se outro remédio se adaptará a ele. “Já imaginou fazer isso para milhares de pessoas?”, questiona.

“É uma angústia que entra no coração da gente, uma dor parecida com a de 30 anos atrás”, lamenta Jenice. “Hoje acordei no meio da noite e me perguntei quanto tempo eu posso aguentar viva sem o remédio.”

Aids no Brasil

Desde os anos 1980, foram registrados mais de 1 milhão de casos de aids no Brasil, 13,5 mil só no ano passado. Em 2020, 10,4 mil pessoas morreram da doença, segundo Boletim Epidemiológico Especial HIV/Aids de 2021, do governo federal.

Estima-se que 700 mil pessoas sejam tratadas com antirretroviral no país, um contingente que recebe cada vez mais jovens: desde 2007, 53% dos novos casos atingem a população de 20 a 34 anos.

“E não é falta de grana. Esse dinheiro foi para financiar apoio a deputados sem ética.”

Da saúde para o orçamento secreto. Jenice se refere ao destino dos R$ 3,3 bilhões cortados da saúde. Como não vetou a reserva R$ 19,4 bilhões para emendas do orçamento secreto — negociado entre o governo e a cúpula do Congresso para distribuir entre parlamentares aliados—, o governo precisou cortar 60% nas despesas da Saúde, incluindo esses 12 programas essenciais.

Pandemia de HIV?

Se faltar remédio ou qualquer programa de tratamento e prevenção ao HIV, o risco é que a doença “vire uma pandemia”, prevê Sidney Parreiras Oliveira, da Rede Nacional de Pessoas Convivendo com HIV/Aids. “Com esses cortes, a meta de zerar as infecções até 2030 pode não ser alcançada porque é preciso investimento e políticas públicas.”

“Quando esse corte foi noticiado, um alerta vermelho ligou no cenário da oncologia no país”, disse Gustavo Nader Marta, vice-presidente da Sociedade Brasileira de Radioterapia para a Agência Aids. “Temos grande dificuldade para ofertar tratamento oncológico suficiente no Brasil, e 70% da população depende exclusivamente do SUS.”

Ele diz que se surpreendeu com a notícia porque o Brasil viveu um longo período sem diagnóstico de pacientes com câncer durante a pandemia de covid-19.

“Esses pacientes estão chegando aos serviços de assistência agora com a doença mais avançada”, diz. “O que precisamos agora é de mais investimento para reduzir a fila e oferecer tratamentos robustos.”

“E ainda querem cortar milhões da oncologia? Será caos e morte. Sabe onde isso vai parar? No cemitério.”

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O Amor - Redação
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